OPINIÃO: visionários! Com o agravamento das mudanças climáticas, aqueles que investirem em negócios sustentáveis e éticos são os únicos que conseguirão sobreviver no futuro.
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Por Christine Ro
Em 2016, Andy Shovel sentia que estava sem rumo. Ele e seu sócio Pete Sharman venderam sua empresa de hambúrgueres no Reino Unido e sentiam que seu próximo negócio precisava ser mais sustentável.
Primeiro, eles pensaram em gestão de reciclagem de resíduos e carros esporte elétricos. Até que as discussões se voltaram para as proteínas alternativas.
A dupla percebeu que esta é uma indústria em crescimento e que eles poderiam fazer uso da sua experiência na área alimentícia. Os dois começaram então a trabalhar em pesquisa e desenvolvimento.
Alguns meses depois, a namorada de Shovel mostrou a ele um vídeo com pintinhos sendo abatidos na indústria de produção de ovos.
“Achei que fosse algum tipo de vídeo alarmista e que eu não deveria assistir”, ele conta. “Acho que, como muitas pessoas, eu tinha o que é chamado de dissonância cognitiva.”
A dissonância cognitiva é um viés psicológico que surge quando as pessoas tentam defender duas ou mais crenças contraditórias ao mesmo tempo – neste caso, “eu gosto de animais” e “eu gosto de comer carne”.
“Ou seja, eu basicamente tinha uma espécie de desconhecimento deliberadamente autoinfligido sobre o que acontece nos bastidores da nossa indústria alimentícia”, explica Shovel. E o vídeo dos pintinhos, para ele, trouxe uma reviravolta.
Enquanto trabalhava nos planos para o novo negócio com bases vegetais, “parti naquela época para uma jornada pessoal”. E foi assim que, de amante do KFC e ex-funcionário do McDonald’s, Shovel passou a ser vegetariano, depois vegano, e defensor apaixonado do bem-estar animal.
Essas jornadas paralelas, pessoal e profissional, levaram vários anos. Shovel e Sharman acabaram fundando a THIS, uma marca de proteína vegetal que pretende atingir as pessoas que comem carne, com seu marketing provocador, mas sem julgamento.
“Determinei logo no começo que, basicamente, a melhor forma de desarmar a defensiva das pessoas… é tentar fazê-las rir”, conta Shovel.
Andy Shovel não é o único empreendedor vegano com passagem pela indústria da carne. A empresa produtora de frango vegetal TiNDLE foi fundada pelo alemão Timo Recker e por um brasileiro, André Menezes. Recker vem de uma família do setor de carne processada e Menezes trabalhou para distribuidores de carne.
As marcas The Vegetarian Butcher e Those Vegan Cowboys foram fundadas pelo fazendeiro holandês de nona geração Jaap Korteweg. Ele decidiu abandonar a criação de animais depois que a febre suína e a doença da vaca louca atingiram a Holanda.
E estes empresários não são os únicos a reavaliar seu trabalho com animais para alimentação. Existem criadores de animais para consumo que também estão mudando de ideia – como o criador britânico que passou a cultivar vegetais com métodos de produção totalmente veganos.
Mas, para mergulhar de cabeça nos chamados “empregos humanos” – que beneficiam tanto as pessoas, quanto os animais – é preciso encontrar apoio social e financeiro.
Substituindo animais por plantas
Para a americana Morgan Salis-Deany, “muitas vezes as mudanças vêm de um acontecimento traumático”.
Foi o que aconteceu na sua família. Uma combinação de dependência, suicídio e ainda outra morte fez com que eles enfrentassem decisões difíceis sobre o que fazer com sua fazenda de 323 hectares, ou cerca de 3,2 km², no Texas (EUA).
O avô e os tios de Salis-Deany criavam vacas e galinhas em níveis industriais. Eram cerca de 1 mil bois e 12 aviários com mais de 55 mil galinhas em cada um.
A escala “é quase inimaginável”, ela conta. E as memórias sensoriais da sua infância permanecem nítidas até hoje.
“Eu me lembro de andar por aqueles aviários com dificuldade para respirar, devido aos níveis de amônia”, ela conta, “e de ver as aves no chão sem poderem se levantar porque o peso do corpo era grande demais.”
Para ela, a mudança de moradia para cursar a universidade na Califórnia foi como entrar em um mundo novo.
Depois da morte do avô, seus tios não conseguiram dar conta da carga de trabalho. E também surgiram dificuldades financeiras.
Por isso, sua mãe e a própria Salis-Deany decidiram voltar para o Texas entre 2017 e 2019. Mas elas queriam que tudo fosse diferente.
A família já se considerava amiga dos animais há muito tempo. Mas havia uma distinção entre o amor aos seus cães e cavalos e o trabalho que elas desempenhavam para viver.
Salis-Deany e sua mãe haviam viajado e dedicado algum tempo ao resgate de animais. E a combinação das suas convicções, pressões financeiras e as dificuldades da criação de galinhas fizeram com que a família decidisse abandonar a pecuária.
Para isso, elas precisaram fazer um empréstimo, mas também tiveram aliados para apoiá-las.
Durante o processo, Salis-Deany contou com o auxílio da ONG Mercy for Animals. A organização administra o programa chamado Transfarmation, nome que mistura a palavra farm (fazenda, em inglês) com a palavra transformation (que significa transformação), sugerindo assim a transformação de fazendas.
O programa oferece assistência técnica e financeira para a transição de fazendas que praticam a pecuária industrial nos Estados Unidos.
Existem projetos similares em outros países. Na Suíça, por exemplo, os fazendeiros estão ajudando uns aos outros para substituir a pecuária leiteira pelo cultivo de aveia.
Mas os programas de transição de fazendas costumam ser realizados em pequena escala. Muitas vezes, é difícil atrair fazendeiros interessados em quantidade suficiente ou fazer com que o trabalho seja economicamente viável.
O projeto Transfarmation trabalhou com 12 fazendeiros em um período de cinco anos, segundo seu diretor, Tyler Whitley. “Trabalhamos com um pequeno número de fazendeiros, de forma muito, muito intensa.”
Para isso, é preciso gerenciar com cuidado as expectativas.
“Quando você faz a transição de um negócio que já dura 20 anos para fazer algo totalmente novo, esta mudança pode ser muito assustadora”, reconhece Whitley. E mudar para um tipo de fazenda totalmente diferente é um processo complexo.
Os fazendeiros geralmente entram em contato com o programa depois de conversar com suas famílias, quando já estão cansados do que estão fazendo.
Seus motivos podem ser diversos, segundo Whitley. Eles incluem problemas financeiros; desejo de melhor qualidade de vida; a busca de mais autonomia em relação aos contratos de produção, nos quais as grandes empresas fornecem os animais; e preocupações com o impacto ambiental ou as condições dos animais.
O projeto Transfarmation fornece informações sobre diversas possibilidades de subsistência e ajuda a testar diferentes usos da infraestrutura já existente nas fazendas, como cultivar cogumelos em aviários.
O programa também costuma conceder pequenos financiamentos, de US$ 10 mil a US$ 20 mil (cerca de R$ 53,5 mil a R$ 107 mil), para ajudar na transição.
A manutenção das dívidas é um problema importante e encontrar mercado para produtos especializados pode ser difícil. Mas Whitley relata que “todos os produtores com quem trabalhamos estão tendo lucro com suas empreitadas”.
Ele também acredita que continuar produzindo alimentos permite que os fazendeiros mantenham seu senso de orgulho relacionado à sua identidade.
Salis-Deany certamente sente orgulho quando descreve as novas atividades desenvolvidas na fazenda da família. Agora, ela trabalha no resgate de animais do centro de resgate Let Love Life, destinado principalmente aos cães.
A fazenda começou a produzir cânhamo, que agora é seco nos antigos aviários, para ser transformado em óleo de canabidiol. E ela também está transformando outro aviário em uma operação de cultivo de flores.
Salis-Deany também tem um plano de longo prazo de hospedagem na fazenda.
Ela reconhece que existem riscos nesses planos tão diversificados, como a redução da lucratividade. Mas também haveria riscos se eles continuassem a gerenciar a fazenda como faziam anteriormente.
Ela tenta viver um dia de cada vez. E, a cada dia na fazenda, ela sente o cheiro de madressilva, sálvia e outras plantas, em vez dos odores da amônia das galinhas confinadas.
Salis-Deany vem observando cada vez mais aves e borboletas na fazenda. “Não vejo nada além de possibilidades.”
Como superar os obstáculos
No caso de Andy Shovel, a transição da indústria da carne para produtos de origem vegetal foi acompanhada por uma mudança radical de ideologia, o que o ajudou a também compreender a psicologia dos seus clientes.
Esta é uma das razões por trás da abordagem irreverente da THIS. Shovel acredita que ela pode ajudar a romper as defesas das pessoas em relação ao consumo de carne.
“Talvez todos nós aceitemos bem o terrível comportamento do nosso sistema alimentar porque achamos que é normal”, afirma ele.
Para Shovel, o poder da normalização é enorme. Por isso, “é importante observar com novos olhos e simplesmente redefinir as normas”.
Mas uma lição dessas transições para alimentos de origem vegetal é que apenas a ética das pessoas costuma ser suficiente. Ela normalmente ajuda se houver também uma razão prática para a mudança.
Uma dessas razões pode ser financeira. As dificuldades criadas pelas dívidas crônicas entre os fazendeiros “facilita muito o trabalho de tentar idealizar uma opção competitiva”, segundo Tyler Whitley.
Shovel conta que o impulso inicial para mudar para produtos alternativos à carne foi o seu enorme potencial de mercado.
Outra questão é a importância de manter o senso de comunidade depois de uma transição importante. Uma mudança radical que envolva a atividade de criação de animais, em que a identidade dos produtores é tão intimamente relacionada com a sua forma de vida, pode ser algo especialmente perturbador.
Morgan Salis-Deany conta que faz parte de um grande grupo de voluntários e funcionários no resgate de animais, mas também de uma comunidade maior para conseguir encontrar alguma base em comum.
Mas não tem sido fácil. Ela nunca se sentiu pertencente à região leste do Texas, onde ela percebe que “ainda existem muitas formas antigas de pensamento, muitos ideais conservadores”.
Mas, mesmo nos Estados Unidos, até grupos politicamente polarizados podem se unir em torno da proteção dos animais de estimação.
Durante o processo de transição da sua família para abandonar a pecuária, Salis-Deany encontrou conforto no senso de comunidade existente em suas outras atividades, como o resgate de cães.
Tudo isso ajuda a evitar o risco de mergulhar demais em comunidades de nicho. Shovel tem consciência deste risco.
“O veganismo é uma área em que, eu acho, as câmaras de eco são extremamente frequentes.”
Como muitos outros veganos, Shovel recebe muitas críticas por suas opiniões sobre os produtos de origem animal.
“Eu me sinto muito isolado, às vezes, quando o assunto é minha ideologia” de não usar produtos animais, explica ele. “É uma dissonância muito forte deixar de seguir as ideologias relativamente comuns para, de repente, passar a se sentir um alienígena.”
Mas existem espaços onde Shovel pode se sentir um pouco menos solitário. Ele estima que cerca de 10% dos funcionários da THIS sejam veganos – mais do que o índice médio do Reino Unido, de cerca de 4%. E ele também fundou recentemente uma ONG dedicada ao bem-estar animal.
Como parte da pequena rede de fazendeiros que trabalharam com o projeto Transfarmation, Salis-Deany também encontrou uma comunidade que consegue ajudá-la a se sentir menos isolada, embora seus participantes estejam espalhados pelos Estados Unidos.
“As comunidades de produtores podem ser muito pequenas”, afirma Whitley. Por isso, para os fazendeiros participantes, a equipe do projeto Transfarmation “tenta fazer com que eles tenham possibilidade de acesso a conferências e outras oportunidades de formação de redes, para que não se sintam tão isolados”.
Aqui, o elemento social é fundamental, como enfatiza a cientista da conservação Anne Toomey, da Universidade Pace de Nova York, nos Estados Unidos.
Para ela, “se houver formas de permitir que a comunidade ambiental demonstre que ser ambientalista é fazer parte de uma comunidade social, acho que pode ser algo muito poderoso”.
Essas comunidades podem ser criadas online, como as redes de apoio a produtores orgânicos na internet.
Toomey acredita que “se as pessoas sentirem que fazem parte de algo e tiverem outras pessoas que possam encontrar para testar isso e aquilo”, elas terão ajuda para superar as dificuldades.
Mas tudo isso envolve ouvir além das cisões sem fazer julgamentos, o que nem sempre é fácil colocar em prática.
Como diz Whitley, “esta é uma época de grandes mudanças e, por isso, é de grande auxílio se conseguirmos nos aproximar dos demais, buscando maior compreensão para podermos enfrentar juntos essas mudanças”.
Fonte: BBC
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